O Norte é mais Português que Portugal. As minhotas são as raparigas
mais bonitas do País. O Minho é a nossa província mais estragada e
continua a ser a mais bela. As festas da Nossa Senhora da Agonia são
as maiores e mais impressionantes que já se viram.
Mais verdades.
No Norte a comida é melhor.
O vinho é melhor.
O serviço é melhor.
Os preços são mais baixos.
Não é difícil entrar ao calhas numa taberna, comer muito bem e pagar
uma ninharia
Estas são as verdades do Norte de Portugal
Mas há uma verdade maior.
É que só o Norte existe. O Sul não existe.
As partes mais bonitas de Portugal, o Alentejo, os Açores, a Madeira,
Lisboa, et caetera, existem sozinhas. O Sul é solto. Não se junta.
Não se diz que se é do Sul como se diz que se é do Norte.
No Norte dizem-se e orgulham-se de se dizer nortenhos. Quem é que se
identifica como sulista?
No Norte, as pessoas falam mais no Norte do que todos os portugueses
juntos falam de Portugal inteiro.
Os nortenhos não falam do Norte como se o Norte fosse um segundo país
Não haja enganos.
Não falam do Norte para separá-lo de Portugal.
Falam do Norte apenas para separá-lo do resto de Portugal.
Para um nortenho, há o Norte e há o Resto. É a soma de um e de outro
que constitui Portugal.
Mas o Norte é onde Portugal começa.
Depois do Norte, Portugal limita-se a continuar, a correr por ali abaixo.
Deus nos livre, mas se se perdesse o resto do país e só ficasse o
Norte, Portugal continuaria a existir. Como país inteiro. Pátria
mesmo, por muito pequenina. No Norte.
Em contrapartida, sem o Norte, Portugal seria uma mera região da Europa.
Mais ou menos peninsular, ou insular.
É esta a verdade.
Lisboa é bonita e estranha mas é apenas uma cidade. O Alentejo é
especial mas ibérico, a Madeira é encantadora mas inglesa e os Açores
são um caso à parte. Em qualquer caso, os lisboetas não falam nem no
Centro nem no Sul - falam em Lisboa. Os alentejanos nem sequer falam
do Algarve - falam do Alentejo. As ilhas falam em si mesmas e naquela
entidade incompreensível a que chamam, qual hipermercado de mil
misturadas, Continente.
No Norte, Portugal tira de si a sua ideia e ganha corpo. Está muito
estragado, mas é um estragado português, semi-arrependido, como quem
não quer a coisa.
O Norte cheira a dinheiro e a alecrim.
O asseio não é asséptico - cheira a cunhas, a conhecimentos e a
arranjinho. Tem esse defeito e essa verdade.
Em contrapartida, a conservação fantástica de (algum) Alentejo é
impecável, porque os alentejanos são mais frios e conservadores (menos
portugueses) nessas coisas.
O Norte é feminino.
O Minho é uma menina. Tem a doçura agreste, a timidez insolente da
mulher portuguesa. Como um brinco doirado que luz numa orelha
pequenina, o Norte dá nas vistas sem se dar por isso.
As raparigas do Norte têm belezas perigosas, olhos verdes-impossíveis,
daqueles em que os versos, desde o dia em que nascem, se põem a
escrever-se sozinhos.
Têm o ar de quem pertence a si própria. Andam de mãos nas ancas. Olham
de frente. Pensam em tudo e dizem tudo o que pensam. Confiam, mas não
dão confiança. Olho para as raparigas do meu país e acho-as bonitas e
honradas, graciosas sem estarem para brincadeiras, bonitas sem serem
belas, erguidas pelo nariz, seguras pelo queixo, aprumadas, mas sem
vaidade. Acho-as verdadeiras. Acredito nelas. Gosto da vergonha delas,
da maneira como coram quando se lhes fala e da maneira como podem
puxar de um estalo ou de uma panela, quando se lhes falta ao respeito.
Gosto das pequeninas, com o cabelo puxado atrás das orelhas, e das
velhas, de carrapito perfeito, que têm os olhos endurecidos de quem
passou a vida a cuidar dos outros. Gosto dos brincos, dos sapatos, das
saias. Gosto das burguesas, vestidas à maneira, de braço enlaçado nos
homens. Fazem-me todas medo, na maneira calada como conduzem as
cerimónias e os maridos, mas gosto delas.
São mulheres que possuem; são mulheres que pertencem. As mulheres do
Norte deveriam mandar neste país. Têm o ar de que sabem o que estão a
fazer. Em Viana, durante as festas, são as senhoras em toda a parte.
Numa procissão, numa barraca de feira, numa taberna, são elas que
decidem silenciosamente.
Trabalham três vezes mais que os homens e não lhes dão importância especial.
Só descomposturas, e mimos, e carinhos.
O Norte é a nossa verdade.
Ao princípio irritava-me que todos os nortenhos tivessem tanto orgulho
no Norte, porque me parecia que o orgulho era aleatório. Gostavam do
Norte só porque eram do Norte. Assim também eu. Ansiava por encontrar
um nortenho que preferisse Coimbra ou o Algarve, da maneira que eu,
lisboeta, prefiro o Norte. Afinal, Portugal é um caso muito sério e
compete a cada português escolher, de cabeça fria e coração quente, os
seus pedaços e pormenores.
Depois percebi.
Os nortenhos, antes de nascer, já escolheram. Já nascem escolhidos.
Não escolhem a terra onde nascem, seja Ponte de Lima ou Amarante, e
apesar de as defenderem acerrimamente, põem acima dessas terras a
terra maior que é o "O Norte".
Defendem o "Norte" em Portugal como os Portugueses haviam de defender
Portugal no mundo. Este sacrifício colectivo, em que cada um adia a
sua pertença particular - o nome da sua terrinha - para poder
pertencer a uma terra maior, é comovente.
No Porto, dizem que as pessoas de Viana são melhores do que as do
Porto. Em Viana, dizem que as festas de Viana não são tão autênticas
como as de Ponte de Lima. Em Ponte de Lima dizem que a vila de
Amarante ainda é mais bonita.
O Norte não tem nome próprio. Se o tem não o diz. Quem sabe se é mais
Minho ou Trás-os- Montes, se é litoral ou interior, português ou
galego? Parece vago. Mas não é. Basta olhar para aquelas caras e para
aquelas casas, para as árvores, para os muros, ouvir aquelas vozes,
sentir aquelas mãos em cima de nós, com a terra a tremer de tanto
tambor e o céu em fogo, para adivinhar.
O nome do Norte é Portugal. Portugal, como nome de terra, como nome de
nós todos, é um nome do Norte. Não é só o nome do Porto. É a maneira
que têm e dizer "Portugal" e "Portugueses". No Norte dizem-no a toda a
hora, com a maior das naturalidades. Sem complexos e sem
patrioteirismos. Como se fosse só um nome. Como "Norte". Como se fosse
assim que chamassem uns pelos outros. Porque é que não é assim que nos
chamamos todos?